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Longe do Mar (6) Eu


Precisava do fim-de-semana. Precisava de dormir sem horas, de me enredar nos meus próprios pensamentos, de dar coerência às minhas emoções e de descansar. Queria ficar comigo por algum tempo, cuidar de mim para mim mesma. Queria ler, queria escrever. A escrita sempre foi a minha melhor maneira de organizar as emoções, de colocar em palavras os indizíveis sentimentos que tantas vezes me assolam. Manter um diário, um registo de desejos e de medos é um habito que guardo da infância e tenho tantas saudades dessa infância das palavras, em que não havia medo. Agora tenho medo das palavras que escrevo. São profecias. Foi com essas palavras que moldei a minha vida, que amassei os meus desejos, que reconstruí as minhas perdas e que tracei o meu rumo. Quase tudo o que sou e o que tenho são essas palavras. Quando arranquei ao esquecimento os meus diários comecei a ter medo de escrever, de estar a criar um mundo demasiado fantasmagórico, habitado de seres frágeis, perigosamente solitários e destruidores. Desde aí a minha escrita tornou-se cínica e colorida de vulgaridades convenientes. Uma forma de me consolar a mim mesma, de me comprometer com uma visão mais optimista da vida, de dar  algum sentido à vulgaridade dos sentimentos humanos e, até, a mim mesma. 

É sábado. O primeiro sábado de uma sexta-feira sem saídas nocturnas e sem o Simão. Há seis semanas que estamos juntos. O Simão instalou-se em minha casa. Não decidimos morar juntos, nem sequer o convidei, apenas foi ficando. Dia após dia foi ficando, foi trazendo uma muda de roupa e foi deixando a roupa usada para lavar, para engomar. Comecei a tomar conta das pequenas coisas do Simão. Aconchegar-lhe o corpo antes de sair para trabalhar e deixá-lo a dormir, a comprar o pão de que ele gosta e a cozinhar para ele, mais do que para qualquer outra pessoa. 

Este é o primeiro sábado sem o Simão. O Simão está em Viseu e eu estou em Lisboa. Na quinta-feira o Simão foi para Viseu. Sem nenhuma justificação, juntou todas as suas coisas, disse que me amava e partiu. Não cheguei a perceber o que se passou, sei, apenas, que foi uma semana difícil. O Simão tornou-se sombrio, deixou de sorrir. Ficava horas a ver programas desportivos na TV, indiferente aos meus gestos de ternura que, com o passar dos dias, iam ficando mais breves e pequenos, quase insignificantes. A indiferença do Simão trouxe-me uma tristeza que há muitos anos não sentia, uma tristeza que dói na garganta e pesa nos ombros. Quando o Simão se despediu-me tive uma vontade imensa de chorar, mas as lágrimas não me chegaram aos olhos, chorei por dentro. Um mar de água invadia-me as entranhas, nascia na minha garganta, inundava-me o coração, os pulmões, cada pedacinho do meu peito. Hoje sinto-me limpa, serena, tranquila e quase feliz. Quase pronta para voltar a falar com o Simão. 

A noite chegou mais fria. É outubro, os dias já são pequenos e algo me convida ao recolhimento, à oração, ao sossego. Aconcheguei-me na cama entre almofadas e uma estranha mansidão. Fiquei quieta por algum tempo, deixando que uma história ininteligível se desenrolasse na minha mente. Pensei para mim própria que me desabituara da vida em comum com um homem e que este meu estado era só uma espécie de cansaço da intensa presença do Simão. Pensei em telefonar ao Simão, ou melhor, enviar-lhe uma mensagem de boa noite, mas adormeci antes de ter tempo para o fazer. 

Precisava de falar com a Raquel. Tudo tinha acontecido tão depressa que me esquecera de falar com a Raquel. Ela tinha que saber, por mim, da minha relação com o Simão. Ocorreu-me nesse momento que também não havia dito ao Simão que tinha reencontrado a Raquel, que conhecia o marido dela e até tínhamos amigos comuns. 

Liguei à Raquel e combinamos tomar um café ao final do dia. Era domingo, o Manuel tinha de estar em Bruxelas na manhã do dia seguinte e tinha decidido viajar de véspera. 

Ao final da tarde, depois de ter deixado o Manuel no aeroporto, a Raquel passou por minha casa e fomos juntas ao único café que encontramos aberto no Lumiar. Sentamo-nos, eu olhei a Raquel nos olhos e disse-lhe que tinha reencontrado o Simão. Ela sorriu. Disse-lhe que não tinha sido um simples reencontro e falei-lhe das últimas seis semanas, da presença do Simão na minha vida e de como tinha sido tão rápido. A Raquel manteve o sorriso. Não consegui decifrar aquele sorriso, era como se não existissem emoções no traço dos seus lábios. Parei de falar. Concentrei-me nos seus olhos escuros, ignorei o sorriso e esperei. Não sabia o que esperar, mas alguma coisa iria acontecer. 

- Estás apaixonada. E sei que o Simão também está apaixonado por ti.

Encolhi os ombros e olhei-a perplexa: - como podes saber isso?

- Se o Simão está contigo é porque está apaixonado por ti. Não sei que te possa dizer mais. Não guardo as melhores recordações do Simão, passei com ele alguns dos piores momentos da minha vida, mas sei o quanto ele pode ser encantador e terno. Espero sinceramente que ele tenha mudado, que seja capaz de perceber a sorte que tem por te ter reencontrado. 

Tracei um gesto vago com a mão. Não sabia mais o que dizer e não queria dizer-lhe que não sabia nada do Simão há três dias. Não queria acreditar que o meu Simão era aquele Simão de quem a Raquel falava.

Custou-me a adormecer, queria enviar uma mensagem ao Simão mas não o fiz. Na manhã seguinte passei pelo gabinete, disse que precisava de dois dias para tratar de um assunto pessoal e fui para Viseu.

O Simão recebeu-me no portão da velha propriedade da família, que a sua mãe administrada com mão de ferro durante anos e que, agora, era uma responsabilidade sua. Entrou no meu carro e percorremos juntos a estrada empedrada até ao pátio da casa senhorial. A poucos metros, lá estava o pavilhão onde a Raquel e o Simão viveram durante os poucos meses em que foram casados. Junto ao pavilhão, um carro vermelho que achei demasiado parecido com o carro do Ricardo. Do outro lado do pátio, debaixo de um telheiro, estavam mais três carros, o mercedes desportivo do Simão, uma carrinha de caixa aberta e um outro carro, mais pequeno de cor branca. 
Estacionei no único espaço vago, junto ao carro branco. 

Entramos em casa pela porta da cozinha e na cozinha estava uma mulher, a Zélia. O Simão apresentou-me a Zélia como sendo a mãe do Ricardo e a responsável por manter a casa e, até, a sua vida em ordem. Sorri para a Zélia e cumprimentei-a, beijando-a. A Zélia retribui o meu cumprimento com total indiferença. Eu era apenas mais uma mulher que o Simão recebia em sua casa. Como todas as outras antes de mim, também eu acabaria por sair daquela casa e da vida do Simão. Outras mulheres se seguiriam.

O Simão levou o meu saco de viagem para o seu quarto e eu segui-o. Quando ficamos a sós, eu sorria feliz por estar com ele, mas no rosto dele havia uma sombra. Depois sorriu, começou a despir-se, puxou-me para junto dele, para junto da cama, ajudou-me a livrar-me da minha roupa, a tirar os ténis difíceis de desapertar, a puxar as minhas calças de ganga, a deixar-me nua e feliz. Ficamos abraçados durante muito tempo, sussurrando um ao outro o quanto precisávamos um do outro, mas ele não me disse porque me deixou naquela maldita quinta-feira. 

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